Ficção Vermelha

Sophia Pinheiro

“conheci sua mãe depois que ela voltou da União Soviética.
ela fez uma festa à fantasia na casa dela”
assim você me disse,
assim eu espremo os cravos nas costas de minha avó
cravos tão profundos
habitantes de buracos
que tiro com delicadeza, algodão e álcool
para não marcar
mas eles sempre voltam
no mesmo lugar
como tudo o que você me disse

fiz massagem com arnica nos pés de minha avó
desinchou,
mas o inchaço sempre volta
como tudo na memória

eu conheci minha mãe depois que ela voltou da União Soviética
nós estávamos juntas
à deriva
numa jangada remada por ela “mais” eu
ela me dizendo: “você precisa ter sintonia!”
parei
porque eu sempre paro quando alguém me diz o que fazer

eu parei deitada

à deriva
olhando da barriga dela o céu fundindo na cabeça
os olhos cantando:
“zum, zum, zum, lá no meio do mar
zum, zum, zum, lá no meio do mar
é os vento que nos atrasa
o mar que nos atrapalha
para no porto chegar
zum, zum, zum”
— deve ser por isso que eu
gosto de máscaras
y fantasias

Sophia Pinheiro - ficção vermelha - fantasia

o ano é 3086

 

as imagens são de 1100 anos atrás, de uma formação oferecida pelo partido comunista brasileiro na URSS, são apresentadas em um projetor soviético. 

 

aqui tudo é deserto. a céu aberto. dormimos em redes penduradas nos cristais que nascem da terra. chove uma vez por ano. adaptamos vestimentas em tanques que conseguem armazenar água da chuva. os poucos rios estão a muitos quilômetros, são três ao todo. atravessamos com as serpentes a terra árida, onde as árvores entram em autocombustão e depois renascem.

 

 

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guardamos nossas pequenas coisas valiosas enterradas.

desenterramos em alguns lugares para tentar encontrar outros guardados. 

 

pegar para si, assim sobrevivemos.

em uma dessas escavações encontrei uma mala. 

nela, haviam alguns pedaços de plástico com imagens. 

cadernos, papéis. de uma língua morta. 

traduzi pelo meu sistema ocular.




★ ★ ★ 



este trabalho reside na impossibilidade. é uma obra-processo. uma forma de tradução em risco.

 

persigo os rastros das estórias através de quase 200 slides, desde a adolescência, sem saber o que fazer. primeiro sem saber ler o manual de instruções escrito em russo, de um projetor soviético com mais de 35 anos, pesadíssimo. de metal puro como pedra. depois, porque essas imagens de arquivo são de minha mãe. e ela está ali. inalcançável, em uma vida que eu não consigo imaginar – mas gostaria de ter – encantada pelas comuns.

 

para a pivô, fiz uma projeção audiovisual desse material. para vermos mais é preciso esvaziar o plano visível, a fim de vermos de outro modo essas traduções pelos corpos daquilo que só as xamãs veem. um trecho da sessão:




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foi em 2012, quando comecei a desenhar em cima das projeções. 

substantivo feminino: mecanismo pelo qual o ser humano atribui a outra pessoa seus próprios sentimentos e motivações.

 

em perspectiva, senti que era preciso

se afastar do sonho de minha mãe 

sem me afastar dela




decidi habitar no equívoco. talvez aceitar

que a tradução não é uma tarefa de simples arrumação, de guardar o novo em velhas gavetas, mas que envolve um efetivo remanejamento. 

 

essa é uma estória inacabada de nós mesmas. nossa utopia vermelha.

 

Título: Ficção Vermelha
Artista:  Sophia Pinheiro
Técnica: fotografias em slide e áudio
Dimensões: dimensões variáveis: imagens em JPEG e áudio de 11min
Ano: 2022

sophia-pinheiro - Sophia Pinheiro

Sophia Pinheiro

Pensadora visual: educadora, pesquisadora, artista e cineasta. Trabalha com cosmopolíticas e cosmopoéticas, pedagogias comunitárias, gênero, sexualidade e epistemologias ameríndias. Doutoranda em Audiovisual pelo PPGCine-UFF, mestre em Antropologia (PPGAS-UFG), licenciada e bacharel em Artes Visuais (FAV-UFG).