A obra “Flecha” emerge da necessidade em se pensar e sedimentar outros rumos para as vidas negras e atravecadas neste mundo gerido pela colonialidade. Enquanto objeto perfurante afeiçoado ao corte, a flecha abre caminhos ao atravessar com desmedida velocidade tudo àquilo que se impõe obstáculo em seu percurso errante; enquanto seta, aponta para a infinidade de possibilidades existentes de ser e estar no mundo que não sejam aquelas impostas pela maquinaria colonial. Nesse movimento robusto, propiciado pelo exercício de imaginações radicalmente desviantes ao complexo colonial, o que se busca num primeiro momento é a derrubada do mundo como tal e de suas tentativas de auto preservação e reprodução; aqui a noção de “quebra” serve enquanto definidora desta ação. Já em um segundo momento, coloca-se em prática a ideia de “fuga”, a mesma que assegurou, desde o advento do mundo moderno colonial, a preservação de vidas, práticas, organismos e epistemologias dos sujeitos lançados ao abismo.
A quebra é caracterizada pelo desejo bélico de destruição e a consequente eclosão de algo por vir: um outro mundo, erguido contra os anseios totalitários e mortíferos do mundo ocidental em todas as suas instâncias, plenamente consciente que tal mobilização só é possível pelo desligamento total com toda e qualquer marca deste “então mundo”. Com a “fuga”, propomos a abertura e difusão de rotas que nos permitam estabelecer esse “desligamento” impregnado as cartografias coloniais com passos sísmicos e calculados criando, em suas entranhas e fissuras, lugares nos quais as imaginações e imaginários fugitivos possam proliferar permanentemente. O trabalho em questão se apropria dos dispositivos fabulatórios desenvolvidos pelos teóricos do que tem sido chamado de “Pensamento negro radical” ou “Estudos radicais negros”, para fornecer as bases episte- mológicas e conceituais do projeto.
Me aproximo dos trabalhos desenvolvidos por artistas negros brasileiros como Rubem Valentim, Abdias do Nascimento, Yedamaria e Emanoel Araújo, nomes importantes para se pensar procedimentos de fuga em prática no campo das artes. Ao fazer isso, “A flecha”, objeto marcadamente geométrico, questiona, assim como alguns desses artistas fizeram, o racionalismo europeu importado por artistas concretos e abstratos a partir da segunda metade do século passado no Brasil. Com Rubem Valentim, a abstração geométrica toma outro lugar ao resgatar marcas, signos e símbolos do imaginário religioso afro-brasileiro.Para o artista, a geometria se torna um meio e não um fim em si, a rigidez do “racionalismo” preconizado pelos concretistas ofereciam os instrumentos práticos para construção de sua poética, entretanto, uma racionalidade que pretende se desligar do mundo e dos aspectos sensíveis da vida humana não pode dar conta da gama de referentes que suas pinturas carregam. Contra as “formas e cores e puras”, o trabalho desses artistas estabelecem novos paradigmas para se pensar a abstração nas artes brasileiras e ao mesmo tempo nos colocam em diálogo com um projeto radical que busca questionar as políticas de representação e os discursos generalizantes e essencialistas que buscam alocar a produção e o artista “negro”. Reivindico as cores e formas de Valentim, Abdias e Yêdamaria, como dispositivos conceituais de extrema importância para a obra em questão. Fugir desse mundo implica em não cair nas armadilhas que este criou e continua a criar na tentativa de aprisionar a poética de artistas negros e racializados. É ir contra toda tentativa de captura implementada pelo sistema de arte e tornar-se “não mapeável” como aponta Juliano Gadelha, fazendo com que toda rota de fuga seja reconhecida apenas por um outro sujeito fugitivo.
“A flecha” dribla e se comunica com Racial na medida em que pensa o “impossível” sem ceder às “ficções de poder” engendradas pelo mundo Moderno/Colonial. Pensar o “negro”, personagem mítico do imaginário branco, é efetuar uma ação da ordem do “impossível” pois é um movimento que se faz na prontidão da falha, um esforço contínuo em direção à um objeto indizível que se pretende desmobilizar. Nenhuma pessoa preta pode escapar do buraco negro que é essa força que acompanha sua sombra, forjada na inabalável capacidade descritiva, uma força escura, uma região no espaço-tempo em que o campo gravitacional é tão intenso que nada – nem a luz/branca – pode evitar, é dessa forma impossível que somos.
Título: Flecha
Artista: Guilhermina Augusti
Técnica: escultura (descrição, esboço)
Dimensões: 4 metros de altura
Ano: 2022
Guilhermina Augusti é artista plástica, desenvolve trabalhos que discutem questões do “corpo” dentro de uma perspectiva outra de humanidade, e o corpo material dos objetos integrados a questão da natureza, geometria, cidade, simbologia, adinkras e fabulações buscando a eclosão da racialidade.